1.4.14

50 anos de uma história mal contada

Um dos atos inaugurais da ditadura, em 1º de abril de 64, militares incendeiam a sede da UNE, no Rio de Janeiro.

Há 50 anos a democracia brasileira sofreu um duro golpe. A trajetória do nosso Brasil tem sido traçada desta forma: períodos de democracia e ditaduras. A luta do povo por direitos e liberdade, contra os interesses da elite econômica que domina o país. 

Além de todas as atrocidades cometidas pela ditadura durante a sua vigência, uma em particular continuou sendo cometida após a redemocratização e de certa maneira perdura até os dias de hoje: a simbólica. A historiografia oficial, que durante mais de 30 anos chamou o golpe de revolução e que qualificou os que lutaram pela democracia como terroristas e guerrilheiros, ainda é amplamente utilizada em escolas e repetida em veículos de comunicação. 

Mas é claro, a história oficial é escrita por quem está no poder. Por isso, os heróis do povo brasileiro -- cada homem e mulher que combateu a ditadura e lutou pela liberdade -- continuam ocultos, ou sendo tratados como “terroristas”.  

A maioria da sociedade desconhece os que deram suas vidas para lutar em defesa da democracia. Foram muitos, e não meia dúzia como afirmou recentemente em entrevista à Folha de S.Paulo o general Leônidas Pires. Muitos outros não morreram, mas sofreram na carne e na alma a mão de ferro dos militares. 

Hoje, ao ver pessoas defendendo a volta dos militares, muitos jovens inclusive, fico realmente triste. E vejo como falta informação e formação sobre o que de fato foi a ditadura. Falta nas escolas, principalmente.

Daí a importância da Lei da Anistia e da Comissão da Verdade. A maioria destes brasileiros e brasileiras estariam anônimos até hoje não fosse a coragem de o governo ter criado a Comissão da Verdade. Nunca devemos nos cansar de repetir que, para que nunca mais aconteça, é preciso conhecer a história! 

“Se existem filhos sem pais, se existem pais sem túmulos, se existem túmulos sem corpos, nunca, nunca, mas nunca mesmo pode existir uma história sem voz. E quem dá voz à história são os homens e mulheres livres que não têm medo de escrevê-la”
Dilma Rousseff – brasileira, presa política, torturada e presidente da República.

E como eu conheci essa história que não estava nos livros?

Nasci em dezembro de 1971, 3 anos após o AI5. O que me lembro da ditadura? Pouco. Da minha mãe escutando Geraldo Vandré, baixinho na sala, e dizendo que o disco dele estava censurado. Eu, apavorada no quarto ao lado, rezando para não prenderem a minha mãe por este ato de transgressão. 

Me lembro que acompanhei atenta à votação do colégio eleitoral que elegeu Tancredo Neves. Nem sei ao certo o motivo, mas torci e vibrei com a sua vitória e chorei com a sua morte. 

Logo em seguida, percebi que não devemos passar pela vida, mas tentar dar um sentido maior a ela. E achei que de alguma maneira deveria me somar à parcela da sociedade que sempre lutou por direitos e liberdade. 

E passei a participar do movimento estudantil. Foi assim que tomei conhecimento, aos poucos, dos crimes que a ditadura cometeu. Fora da sala de aula, mas dentro da escola. Nesta trajetória, conheci pessoas que têm histórias terríveis para contar deste período de trevas que se abateu sobre o nosso país. Mulheres e homens torturados, filhos e filhas que foram separados de seus pais. 

Gilse Cosenza
Meu mais sincero agradecimento a todos e todas. Queria poder citar cada um de vocês, amigos e companheiros de luta, mas vou lembrar de uma mulher que, apesar de ter sido brutalmente torturada, resistiu, sobreviveu e não perdeu a ternura nem a convicção: Gilse Cosenza.

Tive a grata oportunidade de conhecê-la e ver o seu brilho, que continua aceso. Conheço suas duas filhas, Juliana e Gilda. Na juventude atuamos juntas no movimento estudantil, e pude ouvir delas as marcas que a tortura deixou em sua mãe e nelas próprias. 

Abaixo, reproduzo relato de Gilse sobre sua prisão, um pequeno trecho de uma história que não é contada nos livros, mas que todos deveríamos conhecer.

"Fomos colocadas na solitária, onde ficamos por três meses, sendo tiradas apenas para sermos interrogadas sob tortura. Era choque elétrico, pau de arara, espancamento, telefone, tortura sexual. Eles usavam e abusavam. Só nos interrogavam totalmente nuas, juntando a dor da tortura física à humilhação da tortura sexual. Eles aproveitavam para manusear o corpo da gente, apagar ponta de cigarro nos seios. No meu caso, quando perceberam que nem a tortura física nem a tortura sexual me faziam falar, me entregaram para uns policiais que me levaram, à noite, de olhos vendados, para um posto policial afastado, no meio de uma estrada. Lá, eu fui torturada das sete da noite até o amanhecer, sem parar. Pau de arara até não conseguir respirar, choque elétrico, espancamento, manuseio sexual. Eles tinham um cassetete cheio de pontinhos que usavam para espancar os pés e as nádegas enquanto a gente estava naquela posição, de cabeça para baixo. Quando eu já estava muito arrebentada, um torturador me tirou do pau de arara. Eu não me aguentava em pé e caí no chão. Nesse momento, nessa situação, eu fui estuprada. Eu estava um trapo. Não parava em pé, e fui estuprada assim pelo sargento Leo, da Polícia Militar. De madrugada, eu percebi que o sol estava nascendo e pensei: se eu aguentar até o sol nascer, vão começar a passar carros e vai ser a minha salvação. E realmente aconteceu isso. Voltei para a solitária muito machucada. A carcereira viu que eu estava muito mal e chamou a médica da penitenciária. Eu nunca mais vou esquecer que, na hora que a médica me viu jogada lá, ela disse: ‘Poxa, menina, não podia ter inventado isso outro dia, não? Hoje é domingo e eu estava de saída com meus fi lhos para o sítio’. Depois disso, eles passavam noites inteiras me descrevendo o que iam fazer com a minha menina de quatro meses. ‘Você é muito marruda, mas vamos ver se vai continuar assim quando ela chegar Estamos cansados de trabalhar com adulto, já estudamos todas as reações, mas nunca trabalhamos com uma criança de quatro meses. Vamos colocá-la numa banheirinha de gelo e você vai ficar algemada marcando num relógio quanto tempo ela leva para virar um picolé. Mas não pense que vamos matá-la assim fácil, não. Vocês vão contribuir para o progresso da ciência: vamos estudar as reações, ver qual vai ser a reação dela no pau de arara, com quatro meses. E quanto ao choque elétrico, vamos experimentar colocando os eletrodos no ouvido: será que os miolos dela vão derreter ou vão torrar? Não vamos matá-la, vamos quebrar todos os ossinhos, acabar com o cérebro dela, transformá-la num monstrinho. Não vamos matar você também não. Vamos entregar o monstrinho para você para saber que foi você a culpada por ela ter se transformado nisso’. Depois disso, me jogavam na solitária. Eu quase enlouqueci. Um dia, eles me levaram para uma sala, me algemaram numa cadeira e, na mesa que estava na minha frente, tinha uma banheirinha de plástico de dar banho em criança, cheia de pedras de gelo. Havia o cavalete de pau de arara, a máquina do choque, e tinha uma mamadeira com leite em cima da mesa e um relógio na frente. Eles disseram: ‘Pegamos sua menina,ela já vai chegar e vamos ver se você é comunista marruda mesmo’. Me deixaram lá, olhando para os instrumentos de tortura, e, de vez em quando, passava um torturador falando: ‘Ela já está chegando’. E repetia algumas das coisas que iam fazer com ela. O tempo foi passando e eles repetindo que a menina estava chegando. Isso durou horas e horas. Depois de um tempo, eu percebi que tinham passado muitas horas e que era blefe".

GILSE COSENZA, ex-militante da Ação Popular (AP), era recém formada em Serviço Social quando foi presa em 17 de junho de 1969, em Belo Horizonte (MG). Hoje, vive na mesma cidade, onde é assistente social aposentada.










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